Cine Campus: 14 anos de cinema, educação e conexão em São Borja
Desde que os irmãos Lumière apresentaram ao mundo a sétima arte no final do século XIX, o cinema tem encantado gerações com sua combinação única de imagem, som e movimento. De Dziga Vertov a Steven Spielberg, do Cine-Olho à Hollywood, os filmes atravessaram fronteiras e atraíram multidões às salas de exibição ao longo dos anos.

Alunos do Campus São Borja durante sessão do Cine Campus, projeto de extensão que promove debates reflexivos a partir de obras cinematográficas. Foto: Divulgação.
Mas essa não é uma realidade acessível a uma grande parte da população brasileira. Segundo dados do último informe divulgado pela Agência Nacional do Cinema (ANCINE), apesar do crescimento expressivo do setor cinematográfico nacional nos últimos anos, até 2024 mais de 90% das cidades do país ainda não contavam com salas comerciais de cinema. São Borja é uma delas.
Foi então que, em 2011, o município viu surgir no IFFar - Campus São Borja uma iniciativa que se propôs a amenizar essa lacuna: o Cine Campus, projeto de extensão criado para oferecer à comunidade um espaço de aprendizado e entretenimento a partir da experiência cinematográfica. Idealizado pelos professores Alexander Machado e Uilson Linck, o Cine Campus nasceu com a proposta de ser um cine debate, onde além da exibição, os espectadores também pudessem discutir e compartilhar suas impressões sobre as obras.
Alexander, que é professor de História na instituição, conta que a falta de um cinema na cidade impossibilitava que ele trouxesse filmes para análise em sala de aula. A inspiração para a criação do projeto, segundo ele, veio após participar de uma ação da UFSM chamada “Ciclos de Cinema Histórico”. “Nossa intenção era proporcionar um ambiente que estimulasse o interesse por novos filmes e assuntos, além de desenvolver a capacidade de falar em público e a pensar sobre temas por diferentes perspectivas”, explica.
Os primeiros encontros aconteceram aos sábados, em uma sala improvisada. A sessão de estréia, ocorrida no dia 21 de junho, exibiu o longa “Falando Grego”, comédia romântica dirigida por Donald Petrie e lançada em 2009. Como o campus não tem auditório, a equipe precisou improvisar: “Nós cobríamos as janelas com cartolina para escurecer o ambiente. Eu mesmo comprei uma caixa de som. Os filmes vinham em DVD e rodavam num notebook. A gente fazia o que podia com o que tinha”, lembra Alexander.
Primeira Sessão do Cine Campus em uma sala improvisada (2011)
Mas, mesmo com a estrutura limitada, o público compareceu e abraçou a ideia. Naquele momento ficou estabelecido que, a partir de ciclos temáticos predefinidos pela coordenação, os alunos indicariam os filmes e, acompanhados por um servidor, formariam uma equipe para organizar os debates. Pela participação seriam gerados certificados que poderiam ser validados como Atividades Complementares.
Ainda no primeiro ano, além das sessões regulares, foi criada uma “cabine de curtas”: um notebook com fones e um ventilador que circulava por diferentes espaços do campus. A intenção era mostrar que, mesmo com poucos recursos, era possível fazer o cinema acontecer. Nesse mesmo período, atendendo à demanda dos alunos que queriam um tempo maior para organizar os debates, as sessões passaram a ter frequência quinzenal e a ocorrer às quintas-feiras à noite. Logo o projeto também ganhou seus primeiros bolsistas.
E assim, pouco a pouco, o Cine Campus ganhou forma e reconhecimento, até ultrapassar os muros do IFFar e chegar à cidade: levou filmes às escolas, ao museu, ao asilo, à praça, à casa de acolhimento. Foi quando veio a primeira transição.
Novos personagens entram em cena
Em 2013, por questões de agenda, Alexander não pôde mais seguir à frente do projeto. Coube, então, ao professor Jairo de Oliveira, em caráter emergencial, a missão de mantê-lo ativo. Ele conta que durante sua gestão, foram exibidos dez filmes no total, escolhidos a partir da indicação dos participantes e com temática livre. “Bastava demonstrar interesse para trazer a obra e, a partir dali, o debate se desenvolvia”, comenta.
No ano seguinte, mais uma reviravolta: entra em cena Antônio Cândido da Silva, o Toninho. Sua chegada marcou uma nova era para o Cine Campus.
Antônio conta que no início de sua coordenação havia um público bastante presente e participativo. Porém, com o passar do tempo, esse engajamento foi diminuindo, e manter a audiência passou a ser um desafio. A solução encontrada foi incluir uma condicionante para o ganho do certificado: a presença mínima em dez debates.
Outras mudanças vieram em seguida. As sessões, até então quinzenais, voltaram a ser semanais e os ciclos temáticos foram retomados. A rotina também passou a incluir algumas novidades: exibição de trailers da próxima sessão, pipoca vendida pelos formandos, trilhas sonoras temáticas antes da projeção e eventos especiais, como a “Noite do Terror”, quando o prédio do campus se transformava em um verdadeiro trem fantasma para uma sessão de cinema à meia-noite. Esta última se popularizou tanto que ganhou até um documentário produzido pelos alunos.
Em 2015, ele lançou, também, o primeiro Festival de Curtas, incentivando os alunos a criarem seus próprios filmes, do roteiro até a edição. A estréia teve nove produções inscritas, as quais foram avaliadas por um júri técnico, formado por profissionais do IFFar e de outras instituições, e pelo público. No ano seguinte, o número caiu para três, com destaque para uma animação inspirada na série de comédia norte-americana “South Park”. Até que, em 2017, devido a falta de participantes, o festival acabou sendo encerrado.
O ex-coordenador fala com bastante carinho dessa fase, marcada pela criatividade e engajamento dos estudantes. “Criamos até uma cerimônia inspirada no Oscar para premiar o melhor filme e debate, com tapete vermelho, trajes de gala e paparazzis”, conta.
A ligação de Antônio com o projeto foi tão forte, que ele decidiu torná-lo tema de sua dissertação de mestrado. Ao ser questionado sobre o motivo da escolha, ele declara: “Sou um apaixonado por cinema, e vi ali a oportunidade de, além de me aprofundar no tema, pensá-lo como um espaço de educação, mas de uma forma que ele não perdesse a sua característica principal, que é o lazer, o entretenimento”.
Tudo corria bem, até o momento em que chegou a pandemia da COVID-19, e o Cine Campus precisou se reinventar mais uma vez. Sem a possibilidade do presencial, os encontros passaram a ser remotos. O lado positivo dessa fase foi a ampliação do público: pessoas de outros campi, inclusive de outros estados como Santa Catarina, Minas Gerais e São Paulo, passaram a participar das transmissões. Os filmes, no entanto, ficaram limitados ao catálogo de plataformas de streaming, como Netflix e YouTube.
Quando as atividades começaram a retornar, em meados de 2022, as sessões mudaram para o formato híbrido. Nesse momento, após nove anos na coordenação, Antônio precisou se despedir.
Protagonismo Feminino
Então, em 2023, a professora Fernanda Trindade assumiu o papel principal à frente do Cine Campus. “Foi a primeira vez, em doze anos, que o projeto foi coordenado por uma equipe unicamente de mulheres”, afirma, referindo-se à parceria com as educadoras Carolina Scalco Pinheiro e Sabrina Daniana da Rosa.
A novidade refletiu nas telas. “Trouxemos o ciclo Mulheres no cinema, com filmes dirigidos ou protagonizados por mulheres, além de temas como Adolescência na escola, Cinema latino-americano e Meu curso no cinema, que relacionava os filmes às formações técnicas do campus”. Fernanda conta que o maior desafio naquele ano foi restabelecer a conexão com o público após o retorno definitivo ao formato presencial. Depois de dois anos de afastamento, muitos alunos voltaram sobrecarregados e sem o hábito de participar das atividades. Para reconstruir esse vínculo, a equipe optou por reduzir a frequência das sessões e concentrar esforços na qualidade dos debates.
Professoras Sabrina, Carolina e Fernanda, primeira equipe de mulheres a comandar o Cine Campus
A resposta foi positiva. Segundo a docente, os ciclos passaram a ter, em média, 50 filmes inscritos, para o total de 12 vagas disponibilizadas. “Isso mostra que essa ideia de fato dá certo, que tem um público fiel que gosta de cinema, que quer participar”, analisa.
E a recompensa pelo esforço não tardou a vir. Ao final de 2023 o Cine Campus foi contemplado com o Selo ODS Educação, por atingir metas de desenvolvimento sustentável nas áreas de educação, equidade de gênero e redução das desigualdades em conformidade com a Agenda 2030 da ONU.
Após uma trajetória curta, porém marcada por conquistas, em 2024, Fernanda decidiu trilhar novos caminhos e iniciar uma nova graduação. Diante do acúmulo de atividades acadêmicas, optou por afastar-se temporariamente do projeto. Para dar continuidade ao trabalho que estava sendo desenvolvido, Sabrina passou à frente da coordenação.
“É um desafio que assumo com grande alegria e responsabilidade. Estou comprometida em fazer com que o projeto continue sendo um lugar de diálogo, sensível e transformador”, declara.
Hoje, o Cine Campus segue com encontros quinzenais, abertos para toda a comunidade, e feitos a partir de ciclos definidos de forma conjunta por alunos e servidores. Uma das novidades previstas ainda para este ano é o Cine Itinerante, cuja proposta é realizar sessões volantes em escolas da rede pública de ensino do município. “Queremos que o cinema não fique restrito a um espaço fixo, mas que circule e percorra diferentes territórios, dialogando com a realidade de cada lugar por onde passar”, explica a nova coordenadora.
“Um museu de grandes novidades”
Sabrina define o Cine Campus como um espaço de pertencimento, onde cada voz é ouvida e valorizada. “Um dos aspectos que mais me inspira é o envolvimento dos estudantes. É emocionante ver como o cinema se transforma em uma ferramenta de expressão para esses jovens. A cada encontro, eles demonstram o quanto têm a dizer, e o quanto têm vontade de ouvir também”, reflete.
Isabel Motta, estudante do segundo ano do Curso Técnico Integrado ao Ensino Médio de Eventos, compartilha do mesmo sentimento. Ela conta que já chorou, sorriu e até se irritou com alguns dos filmes exibidos, mas que todos contribuíram para que ela aprendesse a construir uma visão mais crítica em relação ao mundo. “O projeto representa muito mais do que apenas cinema, é um espaço de encontro, de troca de ideias e de experiências. Espero que todos que tenham a oportunidade de participar levem-no no coração, assim como eu levo”, declara.
Do auditório improvisado com cartolinas à sessão virtual com participantes de todo o país, do notebook com fones de ouvido à premiação no estilo Oscar, o Cine Campus atravessou mais de uma década reinventando o próprio ato de ver filmes. E ao fazer isso, impactou mais de 1000 espectadores, ajudando a formar uma comunidade mais crítica e conectada.
Mesmo hoje, com tantas opções de streaming e algoritmos que oferecem mais do mesmo, o projeto segue na contramão e celebra o passado. “Um museu de grandes novidades”, como define o professor Alexander, ao tomar de empréstimo a célebre frase de Cazuza.
Em tempos de consumo rápido de conteúdo e múltiplas telas, ele mantém-se como um ato de resistência. “Um convite a olharmos com mais atenção para o mundo e para nós mesmos", avalia Sabrina. Mudam os coordenadores, os ciclos, as formas de exibição, mas o desejo de reunir pessoas para ver e pensar o mundo permanece. Lá, todos partilham da mesma certeza: o cinema transforma.
Como participar
As sessões do Cine Campus ocorrem de forma presencial, na sala 402 (auditório), do prédio de Ensino do IFFar - Campus São Borja, com início às 19h, em dias determinados pela Coordenação. Cada encontro conta com 100 vagas, sendo 50 destinadas ao público interno e as outras 50 para o público externo. Para participar basta se cadastrar junto à Coordenação de Extensão.
Já para submeter propostas de filmes, os interessados devem estar atentos aos editais disponibilizados na página do campus, no portal do IFFar. Entre os requisitos para a submissão está a composição das equipes: até quatro debatedores, com no mínimo um professor e/ou servidor e um aluno para equipes do IFFar, e um professor e/ou servidor e um aluno para equipes de outras instituições.
Cada equipe pode propor até dois filmes, que devem estar em conformidade com o enquadramento temático especificado no edital. Na seleção 12 são contemplados, com prioridade para obras antigas, inéditas no projeto e com propostas de debate relevantes.
A duração máxima da sessão, incluindo apresentação, exibição e debate é de 210 minutos. Ao final dos encontros, os espectadores respondem a um questionário atribuindo notas de 01 a 10 para o filme e para o debate. No término do ciclo, as obras melhor avaliadas e com o maior público são premiadas.
Quer conhecer mais sobre o Cine Campus? Acompanhe no Instagram do projeto.
Galeria do Cine Campus
https://www.iffar.edu.br/ultimas-noticias/item/41505-cine-campus-14-anos-de-cinema-educacao-e-conexao-em-sao-borja#sigProIde9cc621c8f
Secom
Redação: Daniele Vieira - Estagiária de Jornalismo
Revisão: Rômulo Tondo - Jornalista
Colaborador: Elisandro Coelho - Relações Públicas
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